sábado, 21 de maio de 2011

Mística do Boteco: Jesus Cristo frequentaria o "buteco" e o samba?

   Tocar em assuntos polêmicos é tarefa difícil quando falamos da relação Jovem e Deus. Mais fácil seria mexer nas áreas que são mais tranquilas, sem tantas sutilezas ou tabus. Mas aí me pergunto se eu teria algo interessante a falar sobre a juventude, porque ela é pulsação, é energia, é novidade, é inquietação... não apenas as "águas mansas".

Fonte: Sua casa sua festa (autor desconhecido)
   Primeiro, perdão se agora estou falando SOBRE a juventude e não PARA ela. Porque um dos lugares da juventude é o boteco, seja ele na forma dos chique "PUB's" ou o mero "cachorro quente do seu Zé", independente da vontade dos adultos. E antes que pipoque a dúvida "cachorro quente = boteco?", digo que sim, porque segundo o dicionário HOUAISS:
  • "Boteco (uso pejorativo): pequena venda tosca onde servem bebidas, algum tira-gosto, fumo, cigarros, balas, alguns artigos de primeira necessidade etc. ger. situada na periferia das cidades ou à beira de estradas; birosca"
   Até mesmo o dito "inocente" cachorro quente tem características de boteco, só que ao invés de porção de batata frita se pede o cachorro quente, tendo tanto cerveja como refrigerante. Mas as características de sentar-se, comer, beber, falar da vida, desabafar os amores, esquecer um pouco do trabalho e do estudo... permanecem as mesmas.

   Voltando a cruel dúvida, se Jesus frequentaria a "birosca", o "buteco", se este se faria presente nesse antro de "bebedeira"? Afirmaria com toda a tranquilidade: ele não teria problema algum de estar nesse meio. Afinal, as palavras de Mateus (25, 38) são bem claras:
  • "Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, ou fomos te visitar?
  • Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram."
   Jesus se identificou com a vida e o sofrimento do povo, dialogou com os leprosos, inclusive tocando os "intocáveis", "impuros"; sentava-se à mesa com os pecadores, sofrendo todo o tipo de calúnia e difamação dos puritanos de sua época, especialmente os fariseus (Mt 11,19):
  • "Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: 'Ele é um comilão e beberrão, amigo dos cobradores de impostos e dos pecadores'"
  Tranquilo? Penso que não, porque a conversa está apenas começando. Caso eu pare por aqui, certamente alguém poderá dizer que eu estou fazendo apologia ao alcoolismo ou justificando as bebedeiras.


Distinção entre o [Vinho Partilhado] e a [Mercadoria Bebida]
   Pretendo primeiro esclarecer porque esse texto não é apologia ao alcoolismo, e sim uma profunda revisão de uma mística jovem, a qual chamarei de mística do boteco. E para isso entrarei na discussão das drogas e as limitações das atuais análises.
   Uma das maiores falhas de nosso padres e pais quando vão conversar com nossos jovens sobre o boteco, especialmente quando entram na questão das drogas, é que eles não tocam nas questões mais profundas. Limitar-se a discutir o consumo de bebidas alcoólicas é pensar que a ponta do Iceberg é o Iceberg todo. A crise maior no alcoolismo não é o consumo, isso é um sintoma, mas sim é a produção, uma produção voltada a venda de mercadorias, em escala global e industrial.
   O Vinho das bodas de Caná não movimentava capital de giro de indústrias que precisam melhorar sua produtividade, aumentar as vendas, captar novos clientes, expandir e conquistar novos mercados, pagando o preço que for. Demos uma rápida olhada nesse cartaz de cerveja:


   Fazendo as adequadas "proteções" da marca e do rosto da modelo, digamos o que é que está no centro do cartaz, bem no meio do copo. Sim, é um corpo, um corpo em posição sensual, pronto para o consumo. É uma mulher? É óbvio que quem está ali é uma mulher! Mas a sua perna "torneada", o olhar "marotinho" para a câmera não visa expressar como ela frequenta o boteco, tanto que ela não está ali como pessoa, com nome, história. A finalidade dessa foto é mostrá-la como um objeto de prazer, tal como a cerveja que estará naquele copo, saciando a sede de quem o beber.
   As pessoas não precisam imaginar que há mulher no copo quando forem tomar sua cerveja. Há  outras razões que levam as pessoas a tomarem a bebida que são muito mais antigas do que cartazes como esses. A questão de associar a imagem da mulher, como objeto sensual, ao consumo da cerveja visa uma questão simples: aumentar as vendas.
   Falei em aumentar as vendas, então estou voltando para o consumo, certo? Errado, porque antes de existir as vendas, temos um problema que é muito maior, que é movimentar a economia.  Toda a nossa ladainha sobre "Brasil crescendo" perpassa a produção de bens de consumo (celulares, bebidas, automóveis...), e para que as indústrias dêem conta de "escoar" a produção, é preciso vender, e vender muito. Por trás de todo esse discurso que falamos sobre "consumismo", esquecemos de citar a produção de mercadorias e a produção de necessidades para as vendas. Ninguém acorda pensando "hoje eu quero um celular de dois chips" antes de existir tal produto e o mesmo ser fortemente divulgado. É só dar uma olhada no Vídeo da Jornada Mundial da Juventude de 2011:

  • "Na verdade, nunca sonhamos com ir a uma Jornada Mundial da Juventude. A razão é muito simples: ainda não existia"
   Com o devido cuidado de não comparar a JMJ ao consumo de álcool, estou dizendo que foi primeiro a existência de algo que depois criou o "desejo" pelo consumo desse algo. E essa crise entra num patamar mais forte quando entra a questão a resistência física: ao contrário do adulto, que tem a ameaça próxima de cirrose, os jovens têm um fígado forte, que se regenera rapidamente, o que possibilita acostumar-se com o alto consumo de bebidas alcoólicas durante a juventude e posteriormente e levá-lo para a vida adulta.
   É horrível dizer isso, mas nossos pais e padres têm medo de criticar a lógica do sistema capitalista quando vão falar de drogas, não entendem como a cerveja sendo mercadoria, produzida em quantidade absurda e a preços acessíveis, necessitando girar capital, e tendo um lobby ferrenho de propaganda, irá gerar a "necessidade" de seu consumo exacerbado. Ou pior, pensam que é só nos "amiguinhos" que está o "mal caminho" (aliás, palavras horríveis, diga-se de passagem), e que a lógica de nossa economia não tem influencia alguma nisso. O mercado global de heroína não é "mercadinho de fundo de quintal", tem logística, esquema de segurança, corrupção de polícias, etc.
   Uma vez explicado o conceito da bebida como mercadoria, voltemos ao aspecto central da mística do boteco, e as bodas de caná...


A mística de Caná: Vinho melhor foi guardo para o final
   Na época em que meu pai reclamava que eu só tomava vinho "porcaria", aquele da garrafinha de plástico,  e me falava da necessidade de saber apreciar um bom vinho, eu lembro que no grupo de jovens rolou uma discussão sobre o milagre da transformação da água em vinho, com uma pergunta muita engraçada: "afinal, Jesus tomava ou não tomava álcool?".
   Tinha um monte de gente que dizia que era erro de tradução, que o correto era suco de uva, etc.; mas não é aí que está a grande questão. A grande questão é o contexto em que o "milagre" aconteceu, era uma festa de casamento...

Fonte: Jesus Mafa
   O quadro acima é uma pintura africana de Jesus nas bodas de Caná, não é uma "heresia" porque os europeus fazem o mesmo (só que o Jesus nos quadros deles é "loirinho" dos olhos azuis; Maria parece polonesa; e as mesas de suas pinturas são altas e com cadeiras, distintas das mesas que os judeus usavam, sentados ao chão). Sua riqueza é trazer essa coisa de nossa cultura, gente negra, bronzeada do sol, com roupas simples.
   Aí estava Jesus, na festa, e o vinho acabou. E quem vem "reclamar" que acabou o "goró" foi sua mãe, Maria, sim, Maria de Nazaré, a virgem, aquela que a gente costuma tratar como a puritana. Foi Maria que disse para Jesus "eles não tem mais vinho" (Jo 2,1-12).
   Jesus, por sua vez, se faz de desentendido: "Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou!". Que relação ele tinha com aquela gente? O que deveria ser feito? Ele obedeceu a mulher, e fez a alegria do povo, que chegou a falar para o noivo, na figura do mestre-sala:

  • "Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora."
   Que coisa bonita, é só falar a palavra festa que já vem aquela alegria no coração: preparar a melhor roupa, dar aquela ajeitada no visual, chamar as pessoas para viver algo especial. Pois bem, a riqueza desse vinho é que ele foi partilhado, ninguém estava tomando porque havia uma festa para divulgar a marca da vinícola ou porque estava pagando R$ 30,00 para entrar no clube. Aquilo era gratuidade, os noivos queriam que fosse um dia diferente.
   É óbvio que não dá para ficar jogando as coisas de modo irresponsável, afinal, pessoas trabalharam para organizar aquela festa, as coisas não surgem "de graça". E aí que eu falo que a juventude tem algo muito bonito a nos ensinar...


A mística do boteco: o pedido final do sambista
   Quando a gurizada se reúne no boteco, curte seu sambinha, toca violão, mesmo quando toma sua "pecaminosa" cerveja... ainda que condicionados por todas as relações capitalistas de venda de bebidas, consumo de drogas, etc., existe aí uma subversão dessas relações. Eles celebram de uma forma diferente sua vida, partilham uns com os outros suas rotinas, suas alegrias, suas frustrações. O "racha" ou "intera" para comprar aquele refri 2 litros ou porção de batata expressa o seu modo de partilhar o que possuem. Eles podem não ter muito, mas partilham suas economias. De vez em quando aparece aquele que diz um surpreendente: "galera, hoje é por minha conta!", no caso do recebimento do seu primeiro emprego, primeiro salário, fim das aulas, etc.
   Mesmo que o proprietário do bar (talvez sonegador de impostos) e as produtoras de bebidas (querendo apenas aumentar suas vendas) não tenham compromisso algum com a vida dessas pessoas, a partir de tais relações elas constroem suas relações comunitárias. É fato que suas contradições lhe condicionam a episódios não tão bons de se lembrar, como um porre ou um "fora" de uma pessoa que lhe estava deixando louco(a) de desejo, mas ali essa pessoa vive momentos que a casa, a escola e o trabalho talvez nunca lhe proporcionem. E por isso que, quando os mais velhos lhes dizem que tudo aquilo é "perdição", talvez eles tenham ainda mais gana de ir para lá: pois essa "perdição", carregue um certo que de "encontrar-se", se não um "encontrar alguém".
   Quando conversei com um guri numa formação da Pastoral da Juventude sobre o samba de boteco, ele me disse que ali ele se sentia muito bem. E nesse instante fiquei atônito, ao perceber que meus olhos estavam como que fechados: nesse boteco ele estava também desenvolvendo relações comunitárias, de partilha, de boa nova, de ter esperança na vida.
   Eu não nego que ocorra nesse espaço problemas graves como a entrada de jovens no mundo da droga, mas também não posso dizer que outros espaços estão imunes de contradições. Se assim fosse, nunca existiriam padres pedófilos ou corruptos no seio da Igreja Católica, que seria, teoricamente, um exemplo de decência em todos os sentidos.
   Peço perdão se me desviei da reflexão central, não estou aqui para afirmar o boteco em detrimento de nossas capelas e da hierarquia. Estou sim é pedindo para que nos atentemos a isso, se até mesmo os cristãos mais puritanos, que tem "nojo" da palavra "alcóol", organizam proposta como "Barzinho de Jesus", é porque o boteco tem algo a nos ensinar sobre a vida da juventude.
   Esse ensinar está em muitas coisas, inclusive em um modo de falar de partilha e sonhos talvez muito mais pedagógico e espontâneo aos jovens do que nossas longas homilias e pregações em palco sobre a "pedagogia de Jesus". Essa coisa da gurizada na rua me inquieta, porque estou cada vez mais em dúvida quem é que está perdido em que. Se o problema é que a juventude "venha para dentro da Igreja", ou se somos nós que estamos com medo de "ir para a rua", indo ao seu encontro. Não vejo, nem mesmo nas propostas ditas mais "revolucionárias", como o Setor Juventude, esse anseio de sairmos da sacristia.
   As palavras de uma música cantada por Alcione me fizeram até chorar, com uma espécie de alusão ao processo da paixão de Cristo e a delegação de sua autoridade aos seus apóstolos. É quase como um "façam isso em memória de mim":

"Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final...

Não deixe o samba morrer,
Não deixe o samba acabar,
O morro foi feito de samba,
De samba, prá gente sambar..."


   É algo inexplicável, o que é essa coisa de batuques, toques, passos, mesas, sorrisos? Leonardo Boff dizia que "acreditar em Deus é coisa de Europeu, a gente daqui sente Deus!". Eu não sei explicar isso para um europeu, lá não tem samba.
   As minhas pernas balançam conforme a música, os braços deslizam para lá e para cá com a batucada, o povo da mesa olha para a gente e ergue o copo, e daí meu amigo chega perto, me dá um abraço e me diz: "cara, que coisa boa estar aqui contigo, você faz muita falta!". Como é que eu posso dizer que Deus não está vivo nessa gurizada? Tinha tudo aquilo que o povo diz "perdição", mas o que posso falar de uma coisa assim tão bela, tão espontânea? Quantos jovens cristãos não sonhariam em ouvir uma coisa dessa nas suas comunidades de modo espontâneo?
   Jesus talvez esteja proibido de passar no botecos e curtir o sambinha, mas que ali tem milagre de vez em quando, ah, isso tem...

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